O VELHO PAR DE MEIAS




Havia um homem estirado no meio-fio com a cabeça ensanguentada. Pedro parou o carro, acionou o pronto-socorro e aproximou-se. Rasgou um pedaço da própria camisa e enfaixou a cabeça da vítima. 
A ambulância não tardou. Pedro entregou seu cartão a um dos enfermeiros, pedindo que ligasse para dar notícias sobre o ferido.
Dias depois, Pedro recebeu um telefonema. Era o enfermeiro.
- Aquele homem que socorremos terá alta em breve. O nome dele é José Carlos e, ao que parece, não tem parentes aqui.
Pedro foi ao hospital, ainda sem entender por que se interessava tanto pelo sujeito. 
E lá estava José Carlos ao leito, enfaixado e contente por ter escapado da morte. Pedro aproximou-se e contou como o socorrera. O paciente se emocionou e agradeceu muito. Comentou que, há anos, ninguém se interessava por ele.
- Sou morador de rua, fedorento e maltrapilho e todos se afastam de mim.
E desatou a choramingar como uma criança. 
Pedro, imóvel e calado, esperou aquela pobre criatura dar vazão à sua dor reprimida. Depois disse:
- Se quiser contar sua história, fique à vontade.
José Carlos balançou a cabeça e suspirou. Falou sobre o pai alcoólatra e a mãe que, farta de agressões, abandonou a ele e ao irmão, à mercê do pai. Lembrou da fome, da falta que a mãe fazia, das surras que levavam por motivo nenhum.
- Um dia, depois de uma surra de cinto, fugi com meu irmãozinho, jurando nunca mais voltar àquela casa. Andamos por muitas horas; daí o meu irmão, cansado, dolorido e com fome, começou a chorar. Eu tinha onze anos e ele era bem mais novo. Batemos à porta de uma casa. Uma mulher de cabelos brancos, muito bonita, atendeu. Ficou com uma pena danada da gente e nos acolheu. Nunca tínhamos visto uma casa tão enorme, nem comido coisas tão gostosas.
José Carlos parou um pouco. Conteve a comoção e prosseguiu:
- À noite, entre lençóis limpos e aquecidos, entendi que deveríamos ir embora no dia seguinte, porque não queríamos incomodar; mas depois ponderei: e se apenas eu partisse? Podia ser que a mulher adotasse o meu irmão, que ainda era tão pequeno. Então não pude esperar; saí de lá no meio da noite, sem que meu irmão percebesse e levei, como lembrança, um pé de meia dele.
Nesse ponto foi Pedro quem começou a chorar. José Carlos quis saber por que, mas o outro fez um sinal, pedindo que continuasse a falar.
- Certo. Nos dias que se seguiram, fiquei à espreita, observando as saídas da senhora com o meu irmão. Iam a todo lugar: ao parque, às compras e ao mercado. Ela o segurava pela mão, como a um verdadeiro filho. Então fiquei feliz por ele e sumi daquele lugar, tornando-me andarilho e errante. Um dia, cheio de saudade, passei por aquele casarão pra, quem sabe, rever meu irmão. Mas fiquei sabendo que a família havia se mudado dali. Desde então nunca mais tive notícias do Pedro... sim, esqueci de dizer que era esse o nome dele.
Foi aí que Pedro, ainda chorando, retirou algo de dentro da carteira: um pé de meia que José Carlos prontamente reconheceu. 
Ali estava Pedro, o seu amado irmão!
Já não era necessário mais nenhuma palavra. Um abraço longo e caloroso, regado por copiosas lágrimas, selou o reencontro dos irmãos.
Todos que passavam pela enfermaria, ouvindo o relato, também choravam.
Atualmente os dois dirigem um abrigo para crianças em situação de risco que funciona, coincidentemente, na mesma casa bonita onde, um dia, José Carlos renunciou a uma possível boa vida em favor de seu irmão, na esperança de que este pudesse desfrutar o amor de uma mãe adotiva.

Autoria desconhecida - adaptação de Marcos Aguiar. 

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