"SORTUDO"




Uma idosa morava sozinha numa casa enorme. Não tinha parentes e nem amigos, porque todos eles já haviam morrido. Decidira nunca mais se ligar afetivamente a alguém. 
No entanto, apenas para não esquecer seus entes queridos, passou a dar os nomes de alguns deles a seus próprios pertences.
Sua cama espaçosa e confortável se chamava "Belinha". À poltrona aconchegante da sala de visitas deu o nome de "Frida". Já a casa se chamava "Glória" e o carro, "Beto". 
Certo dia, quando estava lavando a lama de Beto, um cachorrinho chegou no portão (o portão não tinha nome porque estava velho e enferrujado). O bichinho parecia estar faminto. A velha lhe deu um pedaço de presunto e o mandou embora.
Porém, a partir do dia seguinte, o cachorrinho retornou, sempre abanando o rabo. A idosa lhe dava de comer mas o enxotava em seguida. Ela pensava: "Belinha não tem espaço para um adulto e um cão. Frida não iria gostar que um animal sentasse nela. Glória provavelmente seria alérgica a pelo de cachorro. E Beto, com seu barulho, assusta qualquer um!"
Um ano se passou.
O visitante se tornara um cachorrão peludo e bonito e tudo continuava do mesmo jeito - até que um dia ele não apareceu.
A idosa esperou o dia inteiro por ele e o dia seguinte também. Nada. Resolveu telefonar para o canil e perguntar se eles tinham acolhido recentemente um cachorro marrom. 
- Senhora, temos dezenas de cães marrons. Seu cão tem coleira com o nome?
Silêncio do outro lado da linha. A velha lembrou que nunca dera um nome para o cachorro. Desligou o telefone, foi com Beto até o canil e informou ao porteiro que estava procurando seu cão.
- Qual o nome do cachorro, senhora?
Ela então se lembrou dos nomes de todos os entes queridos agora mortos. Pensou em como fora sortuda por tê-los conhecido.
- O nome do meu cachorro é "Sortudo"! - respondeu.
E gritou, ao ver os cães no pátio:
- Aqui, Sortudo!
Ao som daquela voz familiar, o cachorro marrom veio correndo. Era ele mesmo. Daquele dia em diante, Sortudo passou a morar com a velhinha.
Beto achou o maior barato transportar o Sortudo. Frida não se incomodou que ele sentasse nela. Glória não ligou para os pelos dele. E todas as noites Belinha fazia questão de se estirar bem para acomodar a idosa e o Sortudo.
Não precisamos ter medo de nos afeiçoar às pessoas, nem preferir o isolamento absoluto. Só se vive plenamente com amor e com pessoas queridas. O contrário não é vida: é sobrevivência vegetativa.
Não nos enclausuremos na solidão, nem percamos a oportunidade extraordinária de amar. É pra isso que estamos aqui.

Texto de Cynthia Rylant - adaptação de Marcos Aguiar. 

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