O ÚLTIMO DIA
Naquela manhã, o homem sentiu vontade de dormir um pouco mais. Estava enfadado. Deitara muito tarde e não havia dormido bem. Mas lembrou que tinha um dia cheio na empresa, então levantou.
Lavou o rosto e fez a barba, apressada e mecanicamente. Nem reparou no rosto cansado e nas olheiras escuras.
Engoliu o café e saiu resmungando com passos arrastados. Deu um beijo seco e rápido na esposa, que tanto se queixava das ausências prolongadas dele. Mas ele precisava trabalhar e amontoar horas extras, a fim de manter o elevado padrão de vida da família - era essa a desculpa constante dele.
Entrou no carro, bateu a porta com estrondo, partiu. Lembrou de ligar para a filha. Sorriu um pouco ao ouvir sobre os primeiros passos do netinho, mas logo fechou a cara com a cobrança da filha; há tempos ele não a visitava para almoçar e ver o neto.
- Ah, filha... sem tempo, trabalhando direto... quem sabe no próximo final de semana?... vou ver...
Chegou à empresa, cara emburrada, mal cumprimentou os colegas. Agenda lotada. Atolado até o pescoço com compromissos e tarefas. Tinha que se concentrar no trabalho e não perder tempo com conversa desnecessária.
- Tempo é dinheiro! - dizia.
À hora do almoço, pediu à secretária pra trazer um sanduíche e um refrigerante diet. Colesterol alto, precisava fazer um check-up, mas ficaria para o mês seguinte.
Começou a reler os papéis do relatório para a reunião da tarde enquanto comia automaticamente. Num momento a vista embaçou. Lembrou logo da última consulta e da advertência do médico. Mas o mal estar logo passou e ele disse a si mesmo que era coisa passageira. "Um café forte com açúcar resolve", pensou.
Terminada a refeição, escovou os dentes, voltou ao escritório. Segundo tempo. Arrumou a maleta e partiu pra o térreo, onde o esperavam na reunião. Resolveu ir pela escada, estava amuado com o elevador. Ao descer os primeiros degraus, sentiu novamente um mal estar - desta vez uma dor forte no peito.
Falta de ar. Dor aumentando. Vista escurecendo. Tudo foi sumindo. Ao mesmo tempo, cenas de sua vida foram aparecendo diante dele, como numa projeção.
A esposa, a filha, o netinho, os parentes e amigos - todos foram surgindo.
Sentia que havia desabado mas, lá dentro, ele lutava contra si mesmo. Não conseguia distinguir o que era mais forte - a dor na coronária entupida ou o peso da consciência a oprimi-lo.
Queria viver um pouco mais, ter uma nova chance de fazer tudo de novo e melhor, voltar pra casa, beijar apaixonadamente a esposa, abraçar com ternura a filha, brincar com o neto... mas não havia mais tempo.
Tudo escureceu de novo... só que agora, pra sempre.
Sabemos de cor que nossa hora de partir pode estar bem próxima, mas é sempre bom relembrar, não é? Que possamos fazer aquilo que precisa ser feito, enquanto temos tempo.
Texto de Roberto Shinyashiki - adaptação de Marcos Aguiar.
Quantos de nós fazemos assim, sem tempo para amar mais, cuidar mais.
ResponderExcluir❤️ lindo texto 👏👏❤️
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